
Foi numa viagem a beira do abismo, onde o vento segurava-me sem hesitar que compreendi que a morte não tinha voz!
Do outro lado apercebi-me de um rosto meio adormecido, meio a sonhar, analisei a cicatriz profunda do seu rosto e toquei de leve como quem evita a dor novamente.
Esta era a marca e a lembrança quando somos arrancados de nos e deixados a deriva num pedaço de terra e jogados como fantoches.
Aurora contou-me o momento em que num dia bonito de Sol, passeava pela praia de Inhambane com as suas tranças a escorrerem pela cintura, a sua voz miudinha era uma canção, penetrei no fundo do seu olhar, salpicando as lágrimas de melancolia num manuscrito amarrotado e já amarelo pelo tempo, escondi as mãos para não mostrar o quão estavam gastas e vazias pelo sofrimento de ouvir um pedaço da sua vida abandonada e arrancada sem o seu consentimento.

Aurora tinha ido passear, caminhou pelas dunas como quem sente a intensidade da vida, deixou marcas dos seus pés na areia para fazer lembrar a sua praia que um dia estivera ali!
Ao longe um grupo de pescadores, o céu de um azul e depois o silencio...
estas eram as últimas recordações que ficaram gravadas no álbum de sua vida...para trás ficara a doce recordação de uma infância amada, de um pai que cuidara de si, da sua casa feita de palhota onde sonhara imensas vezes com o seu casamento com Marlesio...
Hoje Aurora reconhece que fora violada, tal a marca deixada em seu rosto desfigurado e apagado, levada para bem longe de sua casa e de seus amores:
- lá na cidade, sinhora, obrigaram-me a ser quem nunca quis ser!
No infinito do meu olhar vi vários rostos reflectidos por detrás do espelho do mar!

Quem tem o direito de nos tornar quem nunca desejamos ser!
quem nunca desejamos ser?
quem nunca desejamos ser?